Há 70 anos atrás, em 12 de junho de 1946, lá nos altos do Douro, em Trás-os-Montes, nasceu um moleque. Ele era bravo, arteiro, namorador. Desde criança, ajudava na roça, chegou a literalmente quebrar pedra com pé-de-cabra para plantar parreiras. Cuidava de animais, plantava diversas coisas e até trabalhou na Adega da cidade, fabricando o incomparável vinho do Porto.
Em 1964 venho para o Brasil, com pouco estudo, nenhum tostão no bolso, mas muita vontade. Trabalhou em padaria, trabalhou como empregado na feira até que conseguiu, alguns anos depois, ter sua própria barraca. E seguiu na labuta pesada, carregando centenas de caixas de 20 ou mais kg, acordando de madrugada e só chegando do trabalho umas 14hs por mais de 40 anos. E foi nesse trabalho árduo, embaixo de frio, de chuva, ou de sol escaldante, que fez sua vida, construiu seu patrimônio e criou seus três filhos com o conforto que ele não teve na infância. E nunca vi, nesses 45 anos em que com ele convivo, ele lamentar ter trabalhado tanto. Pelo contrário, se eu aprendi alguma coisa com meu pai, foi de ter orgulho de conseguir as coisas com seu próprio esforço!
Com meu pai aprendi como as pessoas são preconceituosas, racistas. Como ele ficava triste quando percebia pessoas que criticavam "esse português" que vem para cá e fica "rico", tirando dos "brasileiros". Povo invejoso, povo injusto. O tal português é um ser humano como eles, que não teve nenhum privilégio na infância, que trabalhou desde muito cedo e que tinha uma rotina de esforço que nenhum daqueles que o invejavam encarariam: tudo o que meu pai conseguiu, qualquer pessoa de qualquer nacionalidade e qualquer raça, conseguiria, se trabalhasse pesado como ele por 40 anos. Mas tem muita gente nesse mundo, e hoje ainda mais, que prefere apontar o dedo e pedir privilégios, usando as desculpas as mais variadas e criticando quem conseguiu as coisas com seu próprio suor.
Com meu pai aprendi a lutar pelo sonho: eu vi ele, literalmente, perdendo os cabelos para conseguir levantar aquela linda casa que construiu para a família. Ele não só pagou, ele literalmente, depois de 12 ou mais horas na feira, ia lá na obra para ajudar a fazer seu sonho real. E, no meio tempo, jogar um tijolo sem querer na cabeça do filho boboca :-D
Com meu pai aprendi muitas lições do mundo real. Não coisas bonitas, românticas, de um mundo cor de rosa. Mas a verdade da vida. As maldades das pessoas. Como devemos ser para sobreviver na selva que é o mundo. E como uso, e repasso, até hoje, seus ensinamentos nada politicamente corretos, somente corretos: "respeite quem te respeita", "quanto mais se abaixa, mais aparece o ...", e por aí vai...
Na minha infância havia a propaganda inesquecível: "não basta ser pai, tem que participar". E meu pai não era só pai, naquela visão antiga de provedor. Depois do trabalho pesado na feira, ele ainda achava energia para jogar bola, brincar de autorama ou de pingue-pongue comigo. Ele sempre arrumou nossas bicicletas, enchia os pneus, limpava o quadro, regulava as marchas. Meu pai, participava.
Com meu pai aprendi que se você quer ter algo, tem que economizar ao máximo e de toda a forma. E que temos que ter as coisas para nós, para nosso futuro, não para mostrar para os outros. Meu pai, jamais, foi um esbanjador: aprendi com ele que sempre temos que dizer que temos muito menos, para não despertar cobiça ou inveja. E sigo, direitinho esses ensinamentos financeiros.
Com meu pai aprendi que um pai prepara e confia em seu filho. Sempre que podia, eu ia com ele para a feira, porque aprendia muito. Ele me ensinou a fazer contas mais rapidamente, de cabeça. Ele me ensinava, sempre, como pensava nos preços que ia cobrar e quais estratégias usava. Ele me explicava porque tinha comprado cada coisa. Ele me ensinava estratégias de vendas e marketing que hoje vejo consultores que cobram fortunas de multinacionais falando como se fossem grandes novidades. E, desde os 10 anos, ele confiava em mim para contar toda a féria (o faturamento), somar as compras e ver o resultado: quase virei contador por causa dessa experiência deliciosa que ele me proporcionou.
Com meu pai eu só não aprendi a derrubar corações. Seu sucesso com a mulherada, mesmo sendo humilde, mesmo estando sujo da feira, mesmo careca e barrigudo (mas com músculos que eu nunca cheguei perto), realmente sempre foi um mistério para mim. O que eu via de sorrisos de freguesas, olhos brilhando, etc., realmente era inacreditável. Ele não precisava fazer esforço: uma fala, um olhar, sei lá, já deixava a mulherada bamba :-D Sei que o frustrei por não ter sido seu sucessor nesse sentido, mas tudo indica que seu neto irá honrar o avô :-)
Bom, pai, o que eu posso dizer? Obrigado por tudo. Que bom que o senhor hoje pode comemorar seus 70 anos aí na sua terrinha, matando as saudades de Alijó, de Presandães, e daqueles nomes engraçados que os Borges adoravam ficar falando nos encontros da família no chalé dos avôs. Aproveite muito, porque o senhor fez por merecer cada prazer que hoje tem. E muitas felicidades nos próximos 70 anos que vem por aí :-)
Veja também:
Pai Herói
Um simples português
Homenagem à família Borges
Viva Portugal e Lembranças alimentares da terrinha
Boas memórias de natal
Uma bela história de amor entre pai e filho: Gonzaga
À minha mãe e 61 piscadas e Mamãe, mamãe, mamãe
Minha eterna companheira de aventuras
Ud 90 - telegráfico e Ud 90 - Vídeos
Saudades do Vô Renato
9 X 70! Dois números incríveis e um enorme parabéns
Homenagem à um tiozão gente finíssima
O pai acabou de ler e mandou dizer que gostou muito do sue texto! Ele se emocionou e agradece muito pelas suas palavras! Um beijo pra todos os M's!
ResponderExcluir